Em junho de 2024, tivemos a publicação oficial da lei 14.879/24, a qual alterou a redação do art. 63 do Código de Processo Civil, especificamente no parágrafo 1º, com a inclusão do parágrafo 5º, estabelecendo regras mais rígidas para a eleição de foro em contratos privados.
A alteração legislativa advém de projeto de lei de autoria do deputado federal Rafael Prudente, cuja justificativa foi que a ausência de critérios processuais para eleição de foro estaria ensejando o abuso do direito de escolha previsto no art. 63 do CPC.
Com a entrada em vigor da lei 14.879/24, o parágrafo 1º do art. 63 do CPC passa a ter a seguinte redação:
A eleição de foro somente produz efeito quando constar de instrumento escrito, aludir expressamente a determinado negócio jurídico e guardar pertinência com o domicílio ou a residência de uma das partes ou com o local da obrigação, ressalvada a pactuação consumerista, quando favorável ao consumidor.
Além disso, ao referido dispositivo da lei processual foi adicionado o parágrafo 5º, permitindo ao magistrado declinar a competência de ofício quando apurado que a escolha se deu de maneira aleatória:
O ajuizamento de ação em juízo aleatório, entendido como aquele sem vinculação com o domicílio ou a residência das partes ou com o negócio jurídico discutido na demanda, constitui prática abusiva que justifica a declinação de competência de ofício.
É claro que pelo pouco tempo de vigência ainda é prematuro avaliar quais serão os efeitos dessa alteração legislativa, a qual, embora em um primeiro momento possa parecer singela, modifica significativamente as expectativas de prevalência do foro de eleição. Há especial apreensão dos subscritores deste ensaio sobre a influência da alteração legislativa nos contratos privados internacionais em matéria de transporte marítimo tanto em relação aos contratos de afretamento como também, em relação aos contratos representados pelos conhecimentos marítimos (bill of lading).
Desde já, merece críticas o enrijecimento dos critérios para o foro de eleição à luz da grave ameaça que oferece ao princípio da autonomia da vontade das partes contratantes, pilar do direito contratual no Estado de Direito, e ao princípio da força de lei dos contratos.
Não se olvidando que há tempos o STF (especial destaque à súmula 335) e o STJ se debruçam sobre o tema, sempre respeitando a primazia da autonomia da vontade das partes, mas coibindo eventuais práticas contrárias ao ideal constitucional (como, por exemplo, no caso de hipossuficiência das partes). Aliás, entende-se ser esta a intenção do legislador: A garantia da autonomia da vontade limitada aos freios processuais legais.
Outro ponto polêmico e que merece atenção é o uso das expressões “aleatório” e “prática abusiva” no parágrafo 5º, uma vez que a evidente ausência de clareza técnica ensejará alongadas discussões judiciais, trazendo ainda mais carga ao já sobrecarregado Poder Judiciário – fato este que por si só contraria a motivação apresentada em justificativa ao projeto de lei 1.803/23 para a criação de regras mais rígidas para a eleição de foro pelas partes contratantes.
A autonomia da vontade das partes nos contratos é um princípio fundamental do Direito, conferindo às pessoas a liberdade de estabelecerem acordos que regulem seus interesses de maneira autônoma e voluntária. Este princípio, amplamente reconhecido e protegido, é essencial para a preservação da liberdade individual das partes contratantes, promovendo a segurança jurídica e fomentando relações jurídicas mais eficientes e justas.
Esse princípio permite que as partes negociem livremente as condições do contrato, em relação ao conteúdo, às obrigações e aos direitos que desejam estabelecer. Isso significa que as partes podem adaptar o contrato às suas necessidades específicas, levando em consideração as suas circunstâncias particulares e preferências. Essa liberdade promove a criatividade na formulação de acordos e incentiva a busca por soluções que atendam melhor às expectativas das partes envolvidas.
Ao reconhecer e proteger a autonomia da vontade das partes, o Direito proporciona segurança às relações contratuais. A partir desse sentimento, as partes podem confiar que as disposições acordadas serão respeitadas e aplicadas. Isso reduz incertezas e previne litígios, pois as partes têm uma visão clara das suas obrigações e dos seus direitos, evitando ruídos indesejáveis e interpretações equivocadas.
A autonomia da vontade também desempenha um papel crucial no estímulo à inovação e ao desenvolvimento econômico, pois os indivíduos e as empresas são incentivados a desenvolver as suas respectivas atividades, confiantes de que podem estabelecer contratos que lhe garantam segurança e consequente retorno justo aos seus investimentos. Essa liberdade contratual permite a criação de parcerias estratégicas, acordos de colaboração e desenvolvimento de tecnologias, impulsionando o crescimento econômico e a competitividade.
Também a diversidade cultural e social é respeitada quando a autonomia da vontade prevalece no âmbito dos contratos. Quando falamos em contratos internacionais estamos diante de diferentes comunidades e costumes, como é caso daqueles que militam no comércio internacional, com suas próprias regras, tradições e valores que podem ser refletidos nos acordos que estabelecem. Ao permitir que as próprias partes definam as cláusulas contratuais de acordo com suas próprias perspectivas e valores, a autonomia da vontade promove o respeito às peculiaridades daquele grupo.
Embora o respeito à autonomia da vontade seja essencial, não é absoluta, posto que o Direito impõe certas limitações para proteger interesses que não podem ser adequadamente negociados ou que sejam considerados contrários à ordem pública ou aos bons costumes. Para isso existem freios legais, como, por exemplo, às cláusulas que violem direitos fundamentais, normas cogentes ou que sejam manifestamente abusivas, passíveis de serem consideradas nulas ou anuláveis.
Portanto, o respeito à autonomia da vontade das partes nos contratos permite que as relações jurídicas sejam mais justas e eficientes, promovendo a liberdade de contratar, facilitando a adaptação às complexidades e diversidades das relações comerciais. Além disso, contribui para o desenvolvimento econômico, pois incentiva a inovação, fortalece a confiança e estabelece a previsibilidade nas relações.
Ainda, não podemos deixar de analisar o tema à luz do que dispõe o art. 9º da LINDB – lei de introdução as normas do direito brasileiro, dispositivo de extrema importância no ordenamento jurídico brasileiro, que estabelece diretrizes fundamentais relacionadas à autonomia da vontade das partes nos negócios jurídicos. Esse dispositivo confere às partes a liberdade de pactuar acordos e estipular cláusulas conforme seus interesses mútuos, desde que respeitados os limites legais e os princípios de ordem pública.
Conforme já discorrido acima, a autonomia da vontade é um princípio basilar do direito privado, permitindo que os indivíduos possam regular suas relações de forma livre, contanto que dentro dos limites estabelecidos pela lei e sem violar direitos de terceiros ou princípios fundamentais da ordem jurídica. O art. 9º da LINDB consolida essa premissa ao garantir que os acordos celebrados entre as partes sejam respeitados e tenham força vinculante, sob a condição de não violarem disposições imperativas da legislação vigente.
Esse dispositivo legal desempenha um papel crucial na interpretação e aplicação das normas jurídicas no Brasil, especialmente no contexto dos contratos internacionais. O art. 9º estabelece que “para qualificar e reger as obrigações, aplicar-se-á a lei do país em que se constituírem”, salvo disposição em contrário ou quando houver interesse público relevante que justifique a aplicação da lei brasileira.
A autonomia da vontade é particularmente importante em contratos internacionais, envolvendo contratantes de países diferentes, portanto sujeitos a diferentes sistemas jurídicos, vez que permite sejam as condições que regerão sua relação contratual livremente pactuadas, respeitadas as normas de ordem pública e os princípios gerais do direito.
A regra do art. 9º da LINDB se revela fundamental para garantir a previsibilidade e a segurança jurídica nas relações contratuais internacionais, permitindo que as partes escolham a lei aplicável ao contrato, facilitando a negociação e a conclusão de acordos, reduzindo incertezas quanto à legislação que regerá eventuais litígios.
Ademais, a autonomia da vontade das partes nos contratos internacionais reflete respeito à soberania dos Estados, posto que, a diversidade de sistemas jurídicos é reconhecida e respeitada, permitindo que as partes escolham as regras que melhor atendam aos seus interesses e necessidades comerciais.
Evidente que a interpretação e a aplicação do disposto no art. 9º da LINDB não são isentas de desafios. A determinação da lei aplicável pode ser complexa em contratos internacionais, especialmente quando há cláusulas de escolha de lei, contratos multijurisdicionais ou quando surgem conflitos entre diferentes sistemas legais.
O art. 9º da LINDB e a autonomia da vontade das partes nos contratos internacionais desempenham um papel essencial na facilitação do comércio global e na promoção de relações comerciais internacionais seguras e previsíveis. Eles garantem que as partes tenham a capacidade de determinar as regras aplicáveis aos seus contratos, ao mesmo tempo em que preservam a integridade dos sistemas jurídicos e dos princípios fundamentais de cada país envolvido.
Na hipótese trazida para análise nesse ensaio, estamos diante de contratos internacionais celebrados no exterior, entre partes contratantes militantes no comércio exterior, plenamente conhecedoras das regras que imperam nesse seguimento, portanto distantes da caracterização de hipossuficiência, quer seja técnica, quer seja econômica. Assim, são relações que não prescindem de intervenção estatal, o que somente serviria para trazer desequilíbrio a relações naturalmente equilibradas afastando-se o ideal da segurança jurídico tão atrelado à autonomia da vontade.
Em uma análise preliminar à inovação legislativa e a expectativa que dela advém de maior intervenção estatal que possa interferir no reconhecimento em juízo das cláusulas de eleição de foro em contratos privados, sobretudo àqueles firmados no âmbito internacional, não se vislumbra um cenário promissor, uma vez que poderá ocasionar desrespeito ao princípio fundamental da autonomia da vontade das partes, bem como em flagrante violação ao que dispõe o art. 9º da LINDB.