O trabalho aquaviário é notoriamente conhecido por suas características bastante específicas, demandando regulação própria e cuidados especiais no que tange à proteção dos direitos trabalhistas. Os profissionais que atuam embarcados enfrentam condições singulares, expostos às intempéries, às regras de convivência restrita e a jornadas que, muitas vezes, envolvem longos períodos longe de suas famílias.
Quando se coloca o trabalho desenvolvido a bordo de embarcações em foco, em especial aquele desenvolvido em mar aberto, é inevitável o enfrentamento de questões de expressiva complexidade pelo Poder Judiciário. É justamente em decorrência de suas mais variadas particularidades, que se multiplicam os debates e controvérsias envolvendo a identificação da legislação trabalhista aplicável e da competência jurisdicional para apreciar os conflitos decorrentes dessas relações, especialmente quando essas atividades se desenvolvem no âmbito de embarcações estrangeiras ou quando estamos tratando de operações desenvolvidas precipuamente em águas internacionais.
De acordo com o que se convencionou no cenário do Direito Internacional, aplica-se, enquanto critério de determinação da legislação aplicável, a chamada “Lei do Pavilhão”, segundo a qual a normativa apropriada à resolução das questões jurídicas trabalhistas referentes à relação jurídica mantida será aquela correspondente a do local de matrícula da embarcação.
No entanto, aplicar essa regra de forma irrestrita pode abrir espaço para o uso de “bandeiras de conveniência”. Nesses casos, empresas de navegação registram suas embarcações em países com leis mais brandas para obter vantagens econômicas. Por essa razão, a jurisprudência brasileira passou a relativizar essa regra.
Um grande marco foi a decisão proferida pela SDI-1 do TST, que fixou entendimento no sentido de que a contratação de trabalhadores brasileiros para desenvolver atividades a bordo de navios estrangeiros em percursos em águas nacionais e internacionais devem seguir a legislação brasileira, naquilo que for mais favorável.
Ademais, no que tange à discussão sobre a legislação aplicável aos contratos de trabalho com elementos de conexão com mais de um ordenamento jurídico, é imprescindível a observância da chamada teoria do centro de gravidade, que tem por finalidade identificar qual ordenamento jurídico possui vínculo mais significativo com a relação jurídica em análise, levando em conta os mais variados elementos que integram todo o processo de contratação. Analisando a jurisprudência, tem-se que essa teoria tem sido bastante utilizada como instrumento de concretização do princípio da norma mais favorável ao trabalhador, permitindo ao julgador, diante das particularidades do caso concreto, afastar a aplicação da “Lei do Pavilhão”.
Mais recentemente, com a publicação do Decreto nº 12.555/2025, que regulamenta a Lei nº 14.301/2022 (Programa BR do Mar), reacendeu-se a discussão sobre o regime jurídico aplicável aos tripulantes de embarcações que operam na navegação de cabotagem. Apesar de estabelecer diretrizes importantes para o setor, o Decreto regulatório não trouxe definição específica quanto à aplicação das leis trabalhistas brasileiras aos contratos de trabalho de tripulantes, especialmente os estrangeiros.
A promulgação da Lei nº 14.301/2022, que instituiu o Programa de Estímulo ao Transporte por Cabotagem, trouxe uma mudança significativa para o setor de cabotagem, ao flexibilizar o afretamento de embarcações estrangeiras para operação no transporte marítimo doméstico. Tal mudança alterou significativamente o cenário antes regulado pela Lei nº 9.432/1997, que priorizava embarcações de bandeira brasileira e restringia o uso de navios estrangeiros a hipóteses excepcionais.
Uma importante determinação trazida no bojo do decreto regulatório, foi a atribuição de responsabilidade ao Ministério do Trabalho e Emprego pela fiscalização das condições de trabalho, segurança e saúde no trabalho a bordo de embarcações que operam na cabotagem, devendo este zelar pela aplicação de normas legais e infralegais, bem como dos tratados e convenções internacionais ratificados pelo Brasil. A competência da fiscalização foi ampliada também para verificar o cumprimento das exigências relativas à admissão de tripulantes brasileiros tanto em embarcações de bandeira nacional quanto em navios estrangeiros que operem na cabotagem, nos termos da legislação vigente e das resoluções do Conselho Nacional de Imigração.
As mudanças trazidas pela BR do Mar e pelo Decreto nº 12.555/2025 têm inegável repercussão na esfera trabalhista. Embora não tragam resposta definitiva quanto à aplicabilidade da legislação brasileira aos contratos de trabalho de tripulantes estrangeiros, deixam claro que as empresas deverão observar as normas de saúde, segurança e condições de trabalho previstas tanto no ordenamento interno quanto nas convenções internacionais.
Em síntese, o constante aprimoramento do arcabouço jurídico e a sua efetiva aplicação são cruciais para conciliar os objetivos de crescimento da navegação com a garantia de direitos e a valorização do trabalhador marítimo.